quinta-feira, 29 de maio de 2014

Uma asa só

Meu avô costumava me acompanhar até o colégio, quase todos os dias, até o último dia do último ano. Íamos eu e ele, caminhando acelerados pela Avenida Paulista e quase nada, nem sequer os semáforos, o fazia reduzir o ritmo. Ele ia um quarteirão de costas, o outro saltitando, o outro alongando braços e punhos.. E eu sempre um pézinho atrás, dormindo em pé, mas tentando acompanhá-lo da melhor maneira possível, atualizando-o sobre tudo e sobre todos. 

Em uma dessas manhãs, meu avô percebeu uma senhora. Ela estava sentada em um banquinho bem baixo, encostada em um pedaço de parede ao lado de uma saída de garagem, com as pernas religiosamente cobertas e um potinho entre as mãos que mais parecia um pires para vaso (sabe, daqueles de plastico?). Ela não pedia esmolas, apenas recolhia algumas moedas ou quem sabe uma nota ou outra se algum passante estivesse disposto a depositá-las no pires. Nesta manhã meu avô não tinha dinheiro, mas, como em todas as outras, a energia lhe sobrava e a crença na importância de pequenos gestos caminhava lado a lado com essa energia de criança. Eu o vi encher o peito e dizer um belo bom dia à senhora, que lhe retribuiu com um belo sorriso... Sua pele perfeita, branquinha-branquinha, se enrugou apenas quando ela sorriu; suas mãos soltaram o pires de moedas para acenar.

Os dias que se seguiram foram semelhantes: ele cumprimentava, ela sorria. De vez em quando ele ajudava a fazer sorrir, também, o depósito de moedinhas... Quando tínhamos mais tempo antes de o sinal tocar, ele falava de mim pra ela.

Quatro anos se passaram e agora meu avô encontra com a senhorinha com menos frequência, mas o ritual é o mesmo, toda vez que um ele cruza com ela. Algumas vezes ela se ajeita no banquinho, com a coberta nas pernas, do outro lado da Avenida. Ele faz questão de atravessar. Estufa o peito - acho que se orgulha por fazer parte da minoria que ainda se importa com os outros, com os gestos... - cumprimenta e recebe em troca, sempre, um sorriso e uma benção... Tenho certeza que ela se lembra dele, mesmo com a redução da quantidade de "bons dias". Ela sabe quem ele é.

...

Hoje eu encontrei com a senhora. Suas pernas continuam cobertas e ela vestiu todos os casacos que possui: poucos. 
Precisava pegar um ônibus e o ponto ficava exatamente em frente à ela...

Todas as estufadas de peito do meu avô me passaram pela cabeça quando a vi. Procurei algumas moedas, mas antes que tivesse tempo, o ônibus chegou. Bem na hora! Decisão rápida e a escolha entre perder o ônibus e talvez mudar um dia inteiro. O meu dia e o dela. Deixei o motorista passar. Caminhei até ela...

Não sei por que resolvi comentar sobre o frio. O vento gelado passava a sensação de uma temperatura mais baixa. 

Após me dar bom dia, ela me contou que ganhara um par de luvas ontem. Alguém também tinha conversado com ela sobre o frio. E ela confessou sentir frio nas mãos que seguravam o pires de plástico. Ganhou luvas pretas. Ganhou mais um dia.

Me apressei em voltar ao ponto, mas sem que antes ela me desse, assim como dá ao meu avô, uma benção sorridente. Sem que antes ela me chamasse de menina e me lembrasse do quanto eu sou grata pelo que tenho e do quanto é importante lembrar, também, de que somos todos anjos de uma asa só e só podemos voar se abraçados uns aos outros.



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